QUANTO  CUSTOU  O  NOVO  CÓDIGO  CIVIL ?

MIGUEL REALE

 

                        Até que enfim entrou em vigor o novo Código Civil, desde onze de janeiro último, sendo o caso de saber quanto ele custou, e quais foram os tropeços e momentos decisivos de sua tramitação durante nada menos de 26 anos no Congresso Nacional.

                        Em termos monetários, ele nada custou ao erário. Ao contrário de todos os anteprojetos anteriores, precedidos de contratos de honorários profissionais, José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clovis do Couto e Silva, Torquato Castro e eu aceitamos gratuitamente a alta incumbência, considerando-a um dever cívico.

                        Só cabe, pois, falar em custo no sentido moral, científico e político do termo, pois sua feitura muito custou aos membros da “Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil”, de que fui supervisor, no que se refere à necessidade de muita pesquisa, muita dedicação e muita paciência, sobretudo em razão de críticas apressadas, sem sequer a honesta leitura dos textos.

                        Em primeiro lugar, o novo Código foi possível, por não se querer abandonar as linhas mestras de codificação de 1916, considerada superada em numerosas e relevantes questões, mas merecedora de sobreviver quanto à sua estrutura, salvo no concernente a um novo Livro intitulado “Direito da Empresa”. As duas tentativas anteriores de reforma, não obstante os altos méritos dos juristas encarregados da atualização da Lei Civil, não lograram vingar exatamente por sua pretensão de subverter o quadro normativo vigente, até o ponto de ser eliminada a Parte Geral, contribuição imorredoura de Teixeira de Freitas, seguido por Clovis Bevilaqua.

                        Em segundo lugar, cabe lembrar que foi salutar a decisão do governo de publicar, por quatro vezes, o Anteprojeto do código, a fim de serem ouvidos os interessados, desde os operadores do Direito, advogados e juizes, até as entidades de classe interessadas  na reforma em processamento.

                        Não menor foi o cuidado que teve a Secretaria de Edições Técnicas do Senado Federal quanto à divulgação do Projeto e das sucessivas emendas aprovadas tanto na Câmara dos Deputados como no Senado, convertendo-se, assim, o trabalho inicial da citada Comissão em uma obra coletiva, sobre a qual se manifestou valiosamente até o homem comum .

                        É nessa ordem de idéias que vou destacar os momentos decisivos da elaboração do novo Código, não podendo deixar de me referir, desde logo, a toda uma década perdida, inexplicavelmente, na Câmara Alta, até o ponto de ser o Projeto arquivado, tendo sido corrigido esse erro graças à diligência do senador Cid Sabóia de Carvalho. Descontados esses anos negros, a tramitação do Projeto nº 634/75 durou, a rigor, 16 anos.

                        Antes, porém, de tratar de outras questões, desejo observar que, se houve contínua manifestação de juristas, quer isoladamente, quer no seio de Faculdades de Direito e Tribunais de Justiça, não faltaram os “grandes ausentes”, ou seja, juristas que preferiam permanecer alheios à tramitação do Projeto, torcendo por seu fracasso. Alguns deles somente nas últimas semanas apareceram para dar sua opinião, em geral displicente, quando não havia mais tempo para usufruirmos de tanta ciência escondida... É o caso, agora, de repetir o conselho sábio de Dante: “não cuides dele, mas olha e passa”.

                        O que importa, em verdade, é assinalar os momentos positivos, como, por exemplo, o do Relatório Geral de autoria do grande deputado Ernani Satiro, o qual soube, com eficiência, analisar os relatórios parciais e apresentar valiosa visão de conjunto que permitiu a aprovação do Projeto pela Câmara dos Deputados, após oito anos de estudos e debates.

No Senado Federal, que recebeu em 1984 o Projeto nº 118 da Câmara, cumpre dar realce às emendas oferecidas pelo saudoso senador Nelson  Carneiro, tendo por objeto a revisão  do Direito de Família. Não se deve esquecer que foram essas emendas que levaram a Assembléia Nacional Constituinte a rever em profundidade a organização jurídica da família, depois consubstanciada no admirável Art. 226 da Constituição de 1988.

            Decisão que merece destaque foi a do senador Antonio Carlos Magalhães que resolveu retirar do olvido o Projeto de Código Civil, confiando a redação geral a um jurista do porte de Josaphat Marinho, que teve a gentileza de contatar-me, bem como ao ministro Moreira Alves, para estudo das 346 emendas pendentes no Senado. Pode-se dizer que foi, então, que se decidiu da sorte do Projeto, porquanto o seu Relatório Geral, para cuja redação ouviu Josaphat vários juristas eminentes, veio permitir o pronunciamento final daquela Casa Legislativa.

            Voltando o Projeto à Câmara dos Deputados com  emendas, entendeu ela que devia tratar também de questões surgidas com a nova  Constituição. Para tal fim, foi alterado o Regimento do Congresso Nacional, conforme é amplamente explanado pelo ilustre deputado Ricardo Fiuza em seu Relatório Geral.

            Foi desse modo que, até o último instante, o Projeto do novo Código Civil foi atualizado, pronto a ser aprovado e enviado ao presidente Fernando Henrique Cardoso para sua sanção, o que se deu mediante a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

            Por aí se vê que não tem sentido dizer-se que, por ter durado tanto a sua elaboração, o novo Código Civil já teria sido aprovado com várias omissões ou lacunas, como, por exemplo, as relativas à inseminação artificial e à união de pessoas do mesmo sexo.

            No que se refere à concepção in vitro, cumpre advertir que ela extrapola da Lei Civil, exigindo medidas de ordem administrativa, para proteção do semen e legitimidade da paternidade, envolvendo questões de medicina e de engenharia genética, o que tudo aconselha a se disciplinar essa complexa matéria mediante lei especial.

            O mesmo deve ser dito no que se refere às uniões de homosexuais, cujas relações comportam uma série de medidas diversificadas de ordem patrimonial, com normas especiais sobre a possível adoção de filhos pelo casal, sendo necessárias disposições inclusive no plano sucessório. O que essa união não pode é ser tratada como união estável, pois, o  § 3º do já lembrado Art. 226 da Constituição só a admite quando constituída por um homem e uma mulher.

            Como se vê, os eleboradores do projeto do novo Código Civil foram obrigados a ouvir críticas de toda ordem, não raro resultantes da falta de prévio e sério estudo de seus mandamentos. O “não li e não gostei” aplica-se em muitos casos, notadamente por parte de alguns membros da OAB federal, tão insistentes nas oposições declaradas quão vazios no tocante a seus fundamentos.

            O certo é que, no que se refere a quem ora escreve, jamais recusei a colaboração pedida pelo Congresso Nacional, procurando suprir, na medida de minhas forças, a irreparavel ausência dos companheiros falecidos ao longo de tão demorada tramitação do Projeto, estando, agora, tranqüilo pelo dever cumprido em prol de imperativas exigências da coletividade nacional.

                                                                                                18/01/2003